11 julho 2008

Um quarto de lua

Velas acesas ao fim do dia. Incenso numa casa limpa com comida no forno. A paz dos bichos amados e da estética dos objectos escolhidos em redor. Um lustre vintage num cenário minimalista, meio desarrumado, e toda a inevitabilidade da memória, em cada trago de branco seco. A idade toda num dia, quando já é Maio em Lisboa e os jacarandás floriram numa promessa de novas revoluções. A esperança é fodida após uma furiosa tempestade!
Hoje, quando saí para a vidinha necessária, tropecei em fotografias espalhadas na calçada, um albúm burguês de um qualquer “O meu casamento”, lançado rua abaixo, e tudo aquilo deu-me uma angústia que me deixou imóvel, já dentro do carro, absorvido a olhar os outros. Quase em simultâneo, um bando de adolescentes espigados, soltos do turno escolar, naquela pujança cruel própria foi revirando a intimidade daquela gente exposta. Sonhos de adultos arremessados para o mundo e os amigos deles e os filhos de todos, ali à mercê da vilania de qualquer manipulação.
Na inevitável mania de espiar o mundo, lembrei-me de votos antigos. Há 25 anos atrás, eu e a Maria, renovámos uma promessa que resgatava a nossa sede de liberdade e um desejo de querer uma vida vivida, com o gozo do contraditório em cada momento. Acho que essa necessidade de acender a consciência de nós, diferentes mas gémeos nas emoções, selou um compromisso aos doze anos:
-- Francisco, nunca nos vamos esquecer do que queremos agora! –entoava ela, certa da necessidade de aliviar a pressão da pirâmide de prioridades que se avizinhava lá para o final da adolescência.
Mudar de ângulo tem disto. Reajusta-se o foco na luz, surge outro enquadramento e arrebatamo-nos numa opção que se impõe agora, ali, naquele contexto, numa tomada de decisão instantânea e única. Sempre na senda do momento significativo, quantas vezes ponderado e logo perdido.
Mas a busca do tempo perdido é do melhor que há, como toda a gente sabe. Aquele embalo de culpa resignada é chocolate quente na alma, que se baba toda se formos capazes de dar esse salto à vara no meio da endiabrada memória e descobrirmos morangos suficientes para trincar no futuro. Vitaminas e açúcar podem salvar qualquer um da esperada insanidade moderna.
Nestas andanças, lembro-me sempre do desabafo da Xana sobre a alternância apimentada da Lua, esse salgado romance das marés, num ciclo de mel e fel das criaturas com espinal medula e encantos míticos. Corre, nas nossas cadeias de informação milenar, o susto de estarmos sós perante predadores desesperados, e esse assombro fez-nos garantir parceiros leais ao nosso clã, alargado da cama à casa, do território familiar ao mundo todo, do gesto às ideias. A paz, senhores, “um viver habitualmente” como queria Salazar, que tantos ainda trazem agarrados ao sonho de uma feliz existência.
Magnífica solução se fosse a tradução da identidade ocidental que, ao que se conhece, cresceu sempre nesse permeio do oposto, da contaminação, do desconhecido e da mudança. Talvez a paz seja o silêncio que não pesa porque nada há a temer do outro, que sendo diferente de nós, não nos ameaça antes nos sublinha em cada olhar.
“Namaste, companhia” seria um cumprimento de espírito aberto em qualquer encontro, fugaz ou eterno enquanto durar, livre do domínio da pertença e da representação da hierarquia cultural. E para as mulheres talvez representasse a grande audição, esperada à séculos, nesses talentos abafados na grandeza do lar a ferver um despeito surdo, capaz das maiores magias. A nós, homens tendência à parte, garantia a salvação dos rituais desconcertantes.
A espada e a taça mudavam de mãos. Outros jogos não forram os nossos sonhos? Por detrás de qualquer espelho, quando um raio de sol incide no vidro de um relógio abandonado, sempre que a água cruza um prisma e um coelho cavalga o arco-íris não seremos todos também autênticos nessa margem inexplorada da alma? E se a perspectiva ganhasse asas, agarrada ao fascínio da descoberta de nós nessa aventura maior que é o caminho de uma vida? Sonhos e pedras, chão e nuvens, livros e pão. Tudo a fazer, de novo.

28 março 2008

Raízes ávidas

Dentro daquela caixa, mais uma caixa das muitas que se encavalitavam nos cantos lá de casa, encontrou cartas com palavras dos outros escritas há trinta anos. Pela noite fora, apesar do cansaço e do tempo de sono cada vez mais curto, foi-se deixando levar por uma curiosa necessidade de abrir mais uma e outra e outra, como se um íman a colasse àquelas memórias de uma adolescência tão intensa. Depois, aterrou na cama quase moribunda e no sono imediato e pesado foram crescendo viagens de gente que não via há mais de uma década misturada com a sua tribo de hoje.

E como sempre nos seus sonhos, entre a memória selectiva e os mitos inconscientes, reconheceu-se já a caminho de quem era agora. A mesma obstinada vontade de insistir em afastar os véus das coisas, de precisar de nomear sem metáforas, de desfazer aquela renda tão lusa com que a queriam proteger de si própria, recolhendo-a no apaziguado lar burguês que sempre lhe cheirou a esturro.

A grande contradição deste esforço de educação puritana foi-se impondo devagar porque, obrigada a ser boa aluna, interiorizou os saberes de uma instrução elitista em colégio feminino. Que melhor garantia para se tornar uma esmerada cabra que sempre odiara o que era fácil? É certo que a culpa a atordoou durante décadas, mas hoje descontruído o paradoxo fatal das (pré)ocupações sobre o futuro, estava livre para se deixar ser o que soasse mais autêntico em cada dia.

Talvez por isso Maria se recordava tão bem dos olhos verdes da tia Helena, aquela figura esguia com grandes pestanas nos olhos semicerrados de míope vaidosa, tão parecida com a boneca londrina que lhe trouxera numa Páscoa longínqua e que ela fizera sua eleita, já que todas as outras a aborreciam, ali imobilizadas e patéticas. Apenas esta babie prometia uma fome de futuro na lingerie rosada, o vestido vermelho estampado, o robe manteau preto e branco sobre tudo isto a fazer pandan com uma capeline mole, sapatos pretos com salto alto e longas luvas acetinadas. Um look total dos anos 60 ali à mão de semear para brincar com gozo de fazer-se menina no Bazaar em King’s Road em vez do bem-comportado Paris em Lisboa do Chiado.

Claro que com os bichos de pelúcia e os jogos era outra história, esses sussurravam aventuras e um desejo gordo de fazer menus de macaco numa cama de cowboys e salada de índios (muito mais coloridos!)... Ou então construir casas improváveis com jardins fantásticos, arte bruta e concreta feita de peças de Lego e papéis colados para garantir cenário e drama.

Nunca desenhou grande coisa, mas manipular tecidos e cartões e botões e lãs e missangas dava-lhe uso às mãos que, à parte isso, só seguravam livros e, claro, escrevinhavam desde cedo.

Depois, a tia-avó Irene ensinara-lhe a fazer palavras cruzadas e a partir daí o feitiço foi lançado. Um amor à primeira vista recheado do desejo de nomear bem, de descobrir a palavra certa para aquele jogo concreto, um desafio gráfico e semântico de mãos dadas. E associado sempre a um odor difuso a Chanel nº5 e a Mary Quant cosmetics, unhas curtas pintadas de vermelho, à franja grisalha de Irene e a uma taça minúscula de Grandjó, que podia bebericar em ocasiões festivas, porque era vinho adamado e ia bem com entradas e queijo, pratos favoritos da tia-avó.

No meio disto tudo, lembrara-se da promessa feita aos filhos.

– As tuas palavras são tão caras... Esses teus papéis são bué difíceis e roubam-te horas! Deve ser deformação profissional, mas bute lá, senhora jurista.

Podias era dar a volta e inventar uma história para nós, para a Daniela e para a Beatriz que vai ter um irmão novo e ainda não sabe se quer gostar dele. Antes tinhas sempre tempo para contar aventuras tuas ou dos outros... – A terna chantagem da Ana e do Bruno fê-la derreter-se mesmo agora e na hora agarrou o pedido e agendou o desempenho.

Surpreendam-me esta semana, façam-me sentir bem... e eu arranjo uma surpresa, vale?

Agora, no final do dia, a despachar últimas tarefas e a organizar compromissos próximos, segura que tinha dado conta do recado daquela semana ininterrupta de merda atrás de merda, as insinuantes dores nas costas a ganharem terreno, a eterna tendinite a roçar o absurdo, estava tramada outra vez. Faltava a puta da história!

E, quase em simultâneo, passou da ansiedade de ter mais uma obrigação em atraso ao gosto contrário de ganhar tempo para desfrutar a coisa. Afinal, a perene rodinha precisava de ser oleada, sedenta de créditos para o cabrão do imprevisto que insistia sempre em aparecer sem ser convidado. Mas ela sabia que se sentiria sempre em casa se evocasse quem lhe recheara o coração e lhe ensinara a viver para aprender a acolher(-se) nos outros que nem sempre são demónios, apesar de nos distraírem tantas vezes.

Voltemos às raízes, ao cheiro da terra revolta e da erva molhada depois de um aguaceiro inesperado e graúdo, capaz de nos lavar o céu e reorientar o vento. Afinal, mesmo nos desertos, as raízes moram lá, por isso esgalhemos a alma com perícia até ao osso. Narinas abertas, percepção nua, sons crus. Que festim de bicho!

29 fevereiro 2008

Quem é aquela?



Sentada, à espera, naqueles dias em que tanto lhe faz falta um cigarro, que já só se permite em dias fatais de lautas refeições e cumplicidades bebidas, olha lá para fora e deixa-se vaguear pelo vale e a colina defronte. Aquele casario de Lisboa que conhece de cor e o jogo de encontrar lugares significativos nos interstícios da malha edificada continuam a encher-lhe a vida, sempre que a neura aperta mais um dia até o tornar todo encolhido.

Hoje, depois do caos arrumado e dos gatos acarinhados, saiu de casa com a pressa das horas contadas. Crescer mulher é isto, o espectro do avental da sopeira ancorado na maré baixa e o holograma do medo a ser atravessado até parecer uma ilusão. Tantos séculos de tradição de silêncio e vozes dissimuladas só podiam dar nisto, as mulheres da sua geração eram bipolares.

E ter aberto a caixa de Pandora em busca de uma voz própria nem sempre ajudava. Claro que os assertivos lembravam que assumir a dor faz bem, pode potenciar saltos significativos de crescimento e maior integridade emocional, bla, bla, bla. O pior era a química disso tudo, o desconforto de ter sonhado ser maravilhosa, mas saber-se treinada para usar a volúptia do livre arbítrio, e pelo meio as emoções descarregarem hormonas desconcertantes. Às vezes, tinha a nostalgia de uma vida alcatifada que nunca escolhera, embora já a tivesse espreitado.

Hoje era um daqueles dias maus. Para falar francamente, mesmo fodido. Mais uma vez, estava quase a ficar atrasada na entrega da merda do dossier com que se havia comprometido. Esta espera de um parecer administrativo punha-a numa ansiedade paranóica e, apesar da pressão no diafragma, estava a tentar fazer de conta que não acusava o cansaço de viver todos os dias num país pequenino com um dramático cenário natural, ambições de arrojo e desempenhos medíocres.

O tm sussurou chamadas ao mesmo tempo que viu a Fernanda chegar, embrulhada no vestido/tendência, botas eloquentes e um corte de cabelo fresquinho. Como é que ela arranjava tempo para a sua “imensa criatividade”, paria crianças num ritual periódico e alimentava umas fidelidades românticas a não sei quem, apesar da eternidade do casamento com o baril do Manel, que gramava aquilo tudo com um sorriso olímpico?

Depois viu-a acenar-lhe e, quase em simultâneo, a Margarida saiu do gabinete, seca de carnes e tão nutrida de uma patine de arrogância e vícios pagos. Na eterna televisão de todas as salas de espera, alguém fechava uma notícia em grande estilo e dizia que “o haxixe é como uma mortalha para as capacidades mentais”.

-- Quem é aquela?, leu nos lábios da Margarida enquanto a Fernanda se movia na sua direcção, um sorriso pragmático na cara, como sempre, a desfazer-se à pressa da pergunta da outra.

E, de repente, sentiu uma enorme saudade da tia, do consolo de falar com ela sem enfeites, mesmo que tivesse olheiras até ao umbigo, quilos a mais escondidos num decote em V que já era e todas as contradições a gritarem sem pudor. Uma necessidade irreal de sair dali, mesmo que o corpo se mantivesse no sofá, tal não lhe arranhava a esquizofrenia de viver dualidades a todo o vapor.

A Fernanda debatia-se em episódios recentes sobre aqueles amigos comuns (-- Vê lá que o Jorge anda a fazer psicoterapia e já não sai à noite por aí), a Margarida lembrava-se de Óscar Wilde a propósito das “ tragédias dos outros serem sempre de uma banalidade exasperante” e ela como que a flutuar, a combinar um almoço para usufruir a luz destes primeiros dias de primavera.

Depois, a recepcionista chamou-a e sentiu-se quase salva. Só quando o aperto da mão mole do técnico que a esperava a trouxe a uma realidade mais corpórea, percebeu a antecipação do vómito irrepremível. O cabrão dizia-lhe que ela tinha que “anexar a documentação agora exigida, no prazo indicado, e cumprindo os termos do despacho que prefaciava o dossier, porque o volume de apreciações a que o departamento respondia não se compadecia com apropriações criativas, mais leigas”.

Aí Maria lembrou-se de um medo antigo, ganho num jantar transmontano, em que na mesa do lado uma mulher muito fatal tanto se ria da anedota pícara do colega sedutor que, já entre conhaques, vomitou a alheira e a posta mirandesa, tudo salpicado com grelos e tinto da casa. No caso, ela só poderia regorgitar a puta da francesinha a que se tinha rendido, num grande paleio brasileiro do empregado de mesa careca. Falas mansas, pão ensopado em molho grosso numa trip de carne, enchidos e ovo, sem ignorar as batatas congeladas mal fritas, e agora ela que se amanhasse com a versão bimba de uma tosta francesa para mulheres urbanas à beira de um ataque de nervos e falta de tempo para se dar a esse luxo.

Saiu dali a enfiar papéis na pasta, com uma raiva a galgar terreno feita de vontade própria, enfiou-se no carro e começou a ter uma crise de soluços.
Respira, idiota, respira devagar e agora sustem a oxigenação, que a quebra de ritmo repõe o automatismo... e, nesse instante, soube como era patética na sua aflição de menina com vergonha de se confundir na rejeição de uns papéis pintados com a tinta de um burocrata qualquer.



21 fevereiro 2008

Vinda de tão longe


Recomeçar a cada passo, “vindo de tão longe e tão descansado como o vento”, lá diz o provérbio antigo, sempre a girar na mira de um rumo certo, bem aprende quem cozinha com o prazer da sagrada partilha do pão, lembrou-se Helena quando se punha a caminho dos bosques no Porriño.

Há cem anos, a sua avó materna chegava a Lisboa. É uma menina de mão dada com a irmã mais velha, ambas púberes, e extasiada com o bulício da cidade. O comboio a vapor transporta-as devagar da galega Pontevedra, de uma Espanha pobre e inquieta que já alimenta a guerra civil. E que vinte e cinco anos depois lhes engole o único irmão varão tão ansiado pela família rural que cuida das terras de lavradio e fabrica cestos de vime entre murmúrios de rios e campos prenhes de cereais.

Para trás ficam os pais, o irmão primogénito e a irmã caçula nesses domínios onde as gentes partilham os trabalhos da terra, comunalmente. Espantalhos dourados, moínhos perdidos em tanto arvoredo, ninhos frescos para conversas demoradas, negociações do povo e amores fogosos. Tanto baile ao ritmo da azenha. Do moínho ao forno, o perene ciclo do pão e da mesa, produzido com o suor de toda a família e vizinhos, religando homens, mulheres e os deuses na vida quotidiana de que nunca se esquecerá.

Em Lisboa, espera-as a casa burguesa dos tios ao Poço do Borratém, ali tão perto da Praça da Figueira, onde estes novos tutores detêm um comércio de frutas no então mercado abastecedor da capital. A tia não pode ter filhos, desespera na aflição da maternidade adiada e a partilha com as sobrinhas pode aliviar afectos e trabalhos a que a criada não sabe acudir.

E quando o viço da doce sobrinha Consuelo alimentar a crise de meia-idade do próspero casal de negociantes, a tia manterá a compostura até ao casamento da outra menina, a mais sisuda Rosário. Depois, a tia Glória exilar-se-á na Beira, entre bons ventos litorais e terras montanhosas míticas, o compromisso da traída em busca da sua merecida liberdade.

O pudor de uma educação castradora impedirá D. Rosário, pela vida fora, de nomear esta desonra da irmã, mas sublinhará nela a desconfiança pelo afecto sincero dos homens e uma resistência eterna na gravidade do seu rosto. Alguns julga-la-ão autoritária no governo da casa, severa na educação dos filhos e na apreciação dos costumes mais soltos do pós-guerra. Pouco dada aos bailes e festas devotas do Centro Galego de Lisboa, de pé desde 1908, nesse mar de galegos competitivos sempre empenhados em recomeços vitoriosos que rompam o destino, lá se deixa embalar pelos sonhos nos olhos do futuro marido que há-de querer concessões de restauração no Bairro Alto e no casino da Figueira da Foz. Apesar da megalomania de D. Ramon, que quase lhe custa a ruína e os sete acidentes vasculares-cerebrais que o amansarão até à morte, a avó Rosário protege-se-á sempre do mito da espanhola.

Sabe que não pode voltar para a sua terra, tão dividida e pobre e que agora conhece também um ditador, e o instinto aconselha-lhe distância dessas outras emigrantes compatriotas que se notabilizam por cá como sedutoras. Acha-as banais e tudo lhe diz para se demarcar dessa submissão manipuladora dos caprichos dos homens. A turbulência da I República marca o final da sua infância, esses anos de pobreza e regicídio nas ruas, mas o apaziguamento burgês com as ditaduras e as suas polícias secretas de costumes tinge-lhe a alma.

Casará cedo, aos 24 anos, em busca da sua própria paz, pouco ligada à família que à distância coze o escandâlo de assédio do tio abastado no banho de um hipócrata amor filial de Consuelo, quando as pretensas termas da tia Glória se eternizam na Beira. Com esta mantém um estimado contacto e até aceita, anos mais tarde, o convite de uma estada de Verão com a filha pequena, antes da menina começar os estudos no Asilo dos Calafates, no Bairro Alto.

Para a menina será a festa no campo nunca esquecida. Depois do regresso de D. Rosário a Lisboa, a filhota, mimada agora pela tia-avó, ganha uma porca de estimação e arrasta as férias na alegria do rio, vestido manchado de terra e bichos nos bolsos do avental, fadigas de saúde esquecidas e novas marés à espreita de ouro no Poente. A fama de travessa e niquenta às refeições vai persegui-la, mas descobre a salvação nesses ovos estrelados da tia Glória, que o mítico unto da velha frigideira de ferro tempera com grelos salteados, enchidos e fumados embrulhados num pão tostado forte.

Dias de liberdade e de um carinho sem partilha, o irmão tão amado pela mãe lá longe na cidade, a vida seria perfeita se o pai bailarino aparecesse nas festas de que a tia velha será morgada. Ele não virá, perdido de amores por outra criada ou mesma freguesa certa do seu restaurante, são umas atrás das outras, sempre ignoradas por D. Rosário que avaliará a importância do caso pela dimensão da jóia com que o marido a surpreenderá no final da traição.

Há muito que aprendeu que o óleo de amêndoas doces lhe deixa a pele macia e as pestanas mais longas e brilhantes em torno desses olhos tão pretos quanto os seus cabelos. Baton rosado para abrir o rosto claro, água de colónia floral no lenço de bolso e nas dobras (pescoço, pulsos e joelhos), unhas curtas mas polidas valem-lhe o estatuto de eleita e o eterno retorno do bigode fino de D. Ramon.

Apesar da contenção a que se obriga, a avó Rosário sempre apreciou os seus consolos. Um vestido bem cortado, com remates feitos à mão, um longo casaco de alpaca, um macio e largo xaile de mohair distinguem o seu guarda-roupa, parco em acessórios. Elege brincos e anéis como diários, mas suspeita de mulheres ataviadas para a feira.

Filha de tecedeiros com garra, gente dividida entre redes de pesca e arados, feita de prantos dos ventos no litoral norte que ampliam mitos celtas, a sua força nascia-lhe nas entranhas de matriarca, temida até pela nora moderna e pelo genro afoito. Com o filho deixa-se ser mais doce, esse único homem que amará incondicionalmente até porque se farejam como iguais. Ambos se perdem a cozinhar, numa alquimia de empenho e aromas, cores a ganharem corpo num paladar salgado que uma taça de vinho e fruta da época ajudam a neutralizar sempre.

Queijo é que não, leite e derivados só no chocolate quente, espesso como cobertura e com canela picante a espevitar a alma exigente. Ver D. Rosário escolher e preparar do mercado para a mesa o que seria, mais logo, a sopa de feijão e cenoura com hortelã, o caldo verde e a canja rica, o arroz de acafrão aos fios com tudo o que havia na cozinha, a tortilha tostada, a pescada com pimentos e presunto, as aves de tomatada e vivas ceboladas nos filetes panados fazem hoje Helena ter um paladar experimentado nesses atalhos da memória. E por isso sabe que esta viagem será o seu caminho de Santiago.

20 fevereiro 2008

Gaivotas, sereias e gatos

Amanhecer branco, fachada amarela defronte e as gaivotas a gritarem quebrantos da véspera. Entre tanta fome, quem nos salva desta pressa de encanto, amargo no silvo e burguês na alma preta e branca de putas escrupulosas (aposto que as há)? Cruzo-me com tantos homens e mulheres que a serem corajosos assim só se encontram no céu, azul limpo dos milagres ou só mais febril a fingir que a camada de ozono não interfere na fé, e depois sabem sem falsas delongas exercer a contínua vontade de um sussurro de sobrevivência.

Não fosse a tecnologia e lá estaria eu a morrer devagar, para dar tempo a quem chegasse ou adivinhasse o tal excesso de inquietação, estranho neste dia perpétuo de uma vida coerente apesar da alma tão amarrotada.

Danados soluços de bicho, sempre a farejar nas entrelinhas dos gestos, a ganhar confiança devagar, mesmo que pareça ter aceite um colo sem regatear muito até porque lhe faça falta acalentar um ninho. Inesperadas coleiras e fatais atilhos em que a voz do dono ecoa, quantas vezes prometendo harmonias tentadoras. E lá por parecem quase sempre capazes dos meneios de gajas boas, desconfio tanto do género. Se calhar, rejeito sons agudos e escamas afiadas, nesse espalhafato que a procura de domínio sempre mostra, mesmo embrulhada na ilusão da sedução.

Já a glória é toda outra coisa, é viver a pausa para um chá servido no convés irreal da nossa vida, é a cor do vinho a cheirar a sangue, apesar dos enjôos marítimos ou da náusea da carne morta. Será sempre um desafio de transcendência, um desejo de querer trocar as voltas ao destino e surpreender o espelho com uma careta futura. É querer partir em busca de um regresso a casa e deslumbrar-se na serenidade dos mitos redondos, vencidas as cavernas de todos os pudores.

Vivazes as folhas em torno soluçam e a cidade também. Outra gente arreganha o dente e, claro que o festim lá se promete, quase sempre a encobrir misérias ou receios. Ou apenas negação de um medo sujo.

E se “um duro desejo de durar”, como anunciava o anjo que guiava a mão de Paul Éluard, nos protegesse mais na audácia? Até porque aposto que a mesma curiosidade que se alega ter morto o gato deve ter salvo muitos outros.

Que estranha esta sms da Maria a dizer que a tia Helena foi para a Galiza sem se despedir de ninguém!? Nem de nós...



16 junho 2005

O testamento da tia


A história já deve ter começado há muito tempo. Para o que nos interessa agora, basta perceber o tédio absoluto e talvez algum abuso consentido dos dias dela. Apenas as mãos marcadas pelo tempo, nesses sulcos finos de uma epiderme tratada a cremes e santos ofícios, não se tratasse de uma fêmea que nunca temeu os custos da vontade e do desejo.

Absorvida na aventura pessoal de se testar em cada dia, a entrega emocional proveio-lhe da adolescência em que lia, os clássicos e tudo a eito, com o abandono intelectual próprio de quem procura as referências significativas. Depois, cresceu-lhe o susto, nesse encontro desmesurado com a acção da gravidade sobre os corpos e os valores.

Muitos aditivos, entretanto, ajudaram-na a manter-se atenta, descontraída, presente, a aceitar as rugas de alma mas a evitá-las na competência diária.

Apesar de tudo, continuara a acreditar na disponibilidade mental como ferramenta social. A resposta pronta para o medo dos medos todos. E a epiderme a construir caminhos de um mapa que, sendo seu, a ela nada havia perguntado. E um dia decidiu partir sem dizer nada a ninguém.

Claro que a percepção dos cheiros foi um bom alerta. Nunca sentira os odores da intuição guiarem-lhe a vida assim, talvez fosse a necessidade de viço fresco, “própria da meia-idade”, mesmo que não soubesse bem adivinhar a textura da expressão no seu percurso.

Agora, lá ia nesse grande comboio rumo à Galiza. O ritmo do transporte agradava-lhe, mas ainda sentia imenso desconforto quando encontrava gente que julgava saber os andamentos todos da vidinha. À mesa, entre refeições e parceiros de ocasião, dedilhavam-se conversas informadas e desenhava-se quase sempre uma necessidade de pertença a um grupo eleito... Demasiados juízos inabaláveis sobre desempenhos e escolhas de existências que julgavam partilhar ... sem que a dúvida lhes arranhasse a patética consciência.

Em momentos de maior cumplicidade, ela sabia que alguns desses outros a julgavam uma desinquietadora, pela genuína atenção que eventualmente granjeava a sua urbanidade. Mas até um gato sabe que a conquista da atenção – e há lá coisa mais trágica do que pedir apenas o tempo aos outros – não se compadece com falsas mostras de vontade. Quem vai a jogo quer o gozo da disputa e a desforra do domínio. Tudo desígnios da natureza, que sabe armazenar históricos desde sempre nesses nossos genes tão activos.

De qualquer dos modos, havia gente que desejava a vida tanto quanto ela.

Em momentos precisos, a energia que circulava em torno deles fazia-os saberem-se mais despertos por uma pulsão de sobrevivência urgente. Claro que evitavam a redundante manifestação destas emoções ao abrigo de um prazer tão íntimo quanto adivinhado. Os gatos também se sabem assim; passeiam excelência na exacta dimensão das suas necessidades, determinada e amoralmente. Pena é que os humanos tenham inventado agonias quotidianas só para espantarem tantos medos.

Sobressaltos à parte, o ímpeto da aventura pode ser incendiado por uma visão periférica que adivinha futuros e até pode rasgar contentamentos como esta viagem em busca do Norte mítico, a despedida dela agora.

Amanhã atravessaria o Minho e perder-se-ia nessas outras águas de chegadas e partidas sagradas. Só a Maria ia perceber a metáfora. Por isso releu o seu testamento à sobrinha para se aquietar, agora que se sabia já uma rota sem retorno.

“... Todos os bens acima referenciados e pertencentes à autora do presente disposto são doados à sua única sobrinha Maria, desde que a mesma aceite os princípios seguintes como o verdadeiro legado de sua tia, empenhando-se numa aventura diária de sobrevivência exigente.

Acordares perfeitos de sonos de infância e a memória quente de regalos únicos...

Dias efémeros e irreais, sacudidos pela luz boa de um céu azul e gente a cerzir o tempo, desfrutando, por mero gozo de contemplação...

Querer tudo, outra vez, com a mesma genica e manter a perspectiva com rigor... Cruzar colo, conversa de olhos e espírito crítico em grandes doses...

Saber ser claro e frontal, negociar cenários novos e alimentar sonhos... Construir moléculas de informação prática numa visão integrada de conhecimento...

Ler os outros, desdramatizando o erro e a subjectividade da memória...

E saber contar a espessura dos outros, essas histórias veladas de caracteres impressos em qualquer sobrevivência. Vidas desalinhadas também. À parte o incómodo das opções, resta a desonra do medo, cerzido a tantas raivas pequeninas, e outra vontade maior... a de aventura. Quero que a sua se cumpra. Helena”