21 fevereiro 2008

Vinda de tão longe


Recomeçar a cada passo, “vindo de tão longe e tão descansado como o vento”, lá diz o provérbio antigo, sempre a girar na mira de um rumo certo, bem aprende quem cozinha com o prazer da sagrada partilha do pão, lembrou-se Helena quando se punha a caminho dos bosques no Porriño.

Há cem anos, a sua avó materna chegava a Lisboa. É uma menina de mão dada com a irmã mais velha, ambas púberes, e extasiada com o bulício da cidade. O comboio a vapor transporta-as devagar da galega Pontevedra, de uma Espanha pobre e inquieta que já alimenta a guerra civil. E que vinte e cinco anos depois lhes engole o único irmão varão tão ansiado pela família rural que cuida das terras de lavradio e fabrica cestos de vime entre murmúrios de rios e campos prenhes de cereais.

Para trás ficam os pais, o irmão primogénito e a irmã caçula nesses domínios onde as gentes partilham os trabalhos da terra, comunalmente. Espantalhos dourados, moínhos perdidos em tanto arvoredo, ninhos frescos para conversas demoradas, negociações do povo e amores fogosos. Tanto baile ao ritmo da azenha. Do moínho ao forno, o perene ciclo do pão e da mesa, produzido com o suor de toda a família e vizinhos, religando homens, mulheres e os deuses na vida quotidiana de que nunca se esquecerá.

Em Lisboa, espera-as a casa burguesa dos tios ao Poço do Borratém, ali tão perto da Praça da Figueira, onde estes novos tutores detêm um comércio de frutas no então mercado abastecedor da capital. A tia não pode ter filhos, desespera na aflição da maternidade adiada e a partilha com as sobrinhas pode aliviar afectos e trabalhos a que a criada não sabe acudir.

E quando o viço da doce sobrinha Consuelo alimentar a crise de meia-idade do próspero casal de negociantes, a tia manterá a compostura até ao casamento da outra menina, a mais sisuda Rosário. Depois, a tia Glória exilar-se-á na Beira, entre bons ventos litorais e terras montanhosas míticas, o compromisso da traída em busca da sua merecida liberdade.

O pudor de uma educação castradora impedirá D. Rosário, pela vida fora, de nomear esta desonra da irmã, mas sublinhará nela a desconfiança pelo afecto sincero dos homens e uma resistência eterna na gravidade do seu rosto. Alguns julga-la-ão autoritária no governo da casa, severa na educação dos filhos e na apreciação dos costumes mais soltos do pós-guerra. Pouco dada aos bailes e festas devotas do Centro Galego de Lisboa, de pé desde 1908, nesse mar de galegos competitivos sempre empenhados em recomeços vitoriosos que rompam o destino, lá se deixa embalar pelos sonhos nos olhos do futuro marido que há-de querer concessões de restauração no Bairro Alto e no casino da Figueira da Foz. Apesar da megalomania de D. Ramon, que quase lhe custa a ruína e os sete acidentes vasculares-cerebrais que o amansarão até à morte, a avó Rosário protege-se-á sempre do mito da espanhola.

Sabe que não pode voltar para a sua terra, tão dividida e pobre e que agora conhece também um ditador, e o instinto aconselha-lhe distância dessas outras emigrantes compatriotas que se notabilizam por cá como sedutoras. Acha-as banais e tudo lhe diz para se demarcar dessa submissão manipuladora dos caprichos dos homens. A turbulência da I República marca o final da sua infância, esses anos de pobreza e regicídio nas ruas, mas o apaziguamento burgês com as ditaduras e as suas polícias secretas de costumes tinge-lhe a alma.

Casará cedo, aos 24 anos, em busca da sua própria paz, pouco ligada à família que à distância coze o escandâlo de assédio do tio abastado no banho de um hipócrata amor filial de Consuelo, quando as pretensas termas da tia Glória se eternizam na Beira. Com esta mantém um estimado contacto e até aceita, anos mais tarde, o convite de uma estada de Verão com a filha pequena, antes da menina começar os estudos no Asilo dos Calafates, no Bairro Alto.

Para a menina será a festa no campo nunca esquecida. Depois do regresso de D. Rosário a Lisboa, a filhota, mimada agora pela tia-avó, ganha uma porca de estimação e arrasta as férias na alegria do rio, vestido manchado de terra e bichos nos bolsos do avental, fadigas de saúde esquecidas e novas marés à espreita de ouro no Poente. A fama de travessa e niquenta às refeições vai persegui-la, mas descobre a salvação nesses ovos estrelados da tia Glória, que o mítico unto da velha frigideira de ferro tempera com grelos salteados, enchidos e fumados embrulhados num pão tostado forte.

Dias de liberdade e de um carinho sem partilha, o irmão tão amado pela mãe lá longe na cidade, a vida seria perfeita se o pai bailarino aparecesse nas festas de que a tia velha será morgada. Ele não virá, perdido de amores por outra criada ou mesma freguesa certa do seu restaurante, são umas atrás das outras, sempre ignoradas por D. Rosário que avaliará a importância do caso pela dimensão da jóia com que o marido a surpreenderá no final da traição.

Há muito que aprendeu que o óleo de amêndoas doces lhe deixa a pele macia e as pestanas mais longas e brilhantes em torno desses olhos tão pretos quanto os seus cabelos. Baton rosado para abrir o rosto claro, água de colónia floral no lenço de bolso e nas dobras (pescoço, pulsos e joelhos), unhas curtas mas polidas valem-lhe o estatuto de eleita e o eterno retorno do bigode fino de D. Ramon.

Apesar da contenção a que se obriga, a avó Rosário sempre apreciou os seus consolos. Um vestido bem cortado, com remates feitos à mão, um longo casaco de alpaca, um macio e largo xaile de mohair distinguem o seu guarda-roupa, parco em acessórios. Elege brincos e anéis como diários, mas suspeita de mulheres ataviadas para a feira.

Filha de tecedeiros com garra, gente dividida entre redes de pesca e arados, feita de prantos dos ventos no litoral norte que ampliam mitos celtas, a sua força nascia-lhe nas entranhas de matriarca, temida até pela nora moderna e pelo genro afoito. Com o filho deixa-se ser mais doce, esse único homem que amará incondicionalmente até porque se farejam como iguais. Ambos se perdem a cozinhar, numa alquimia de empenho e aromas, cores a ganharem corpo num paladar salgado que uma taça de vinho e fruta da época ajudam a neutralizar sempre.

Queijo é que não, leite e derivados só no chocolate quente, espesso como cobertura e com canela picante a espevitar a alma exigente. Ver D. Rosário escolher e preparar do mercado para a mesa o que seria, mais logo, a sopa de feijão e cenoura com hortelã, o caldo verde e a canja rica, o arroz de acafrão aos fios com tudo o que havia na cozinha, a tortilha tostada, a pescada com pimentos e presunto, as aves de tomatada e vivas ceboladas nos filetes panados fazem hoje Helena ter um paladar experimentado nesses atalhos da memória. E por isso sabe que esta viagem será o seu caminho de Santiago.

3 Comentários:

Blogger Bruno Moutinho disse...

Que bom poder saborear estas palavras. É o encanto da memória que criamos com o melhor (ou o pior) que os sentidos nos oferecem. Aqueles cheiros intensos de perfumes doces e florais, o sabor forte da cozinha confeccionada com amor, a cor de um baton que deixará sempre uma marca (de amor ou traição) num rosto intimo ou nuns lábios discretos, ou até mesmo o toque suave de uma pele cuidada, nem que seja para agradar a nós próprios.

Até o ser mais seco tem sentimentos e, esondido na pedra fria, encontra-se um coração.

Mas que mais poderei eu tentar dizer, não me chegam as palavras pobres do meu pobre dicionário para descrever o que as tuas transmitem.
Espero mais.
Beijinhos

sexta-feira, 22 fevereiro, 2008  
Blogger ana origami disse...

Reconheci-te a ti Helena neste capítulo e aguardo pelo caminho que inicias nesta história que começa!

terça-feira, 26 fevereiro, 2008  
Blogger Bruno Moutinho disse...

Agora com mais cor, porque a imagem ilustra a criação que outrora deu cor à imaginação.
Ilustrações admiráveis.
Parabéns.

segunda-feira, 07 abril, 2008  

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