29 fevereiro 2008

Quem é aquela?



Sentada, à espera, naqueles dias em que tanto lhe faz falta um cigarro, que já só se permite em dias fatais de lautas refeições e cumplicidades bebidas, olha lá para fora e deixa-se vaguear pelo vale e a colina defronte. Aquele casario de Lisboa que conhece de cor e o jogo de encontrar lugares significativos nos interstícios da malha edificada continuam a encher-lhe a vida, sempre que a neura aperta mais um dia até o tornar todo encolhido.

Hoje, depois do caos arrumado e dos gatos acarinhados, saiu de casa com a pressa das horas contadas. Crescer mulher é isto, o espectro do avental da sopeira ancorado na maré baixa e o holograma do medo a ser atravessado até parecer uma ilusão. Tantos séculos de tradição de silêncio e vozes dissimuladas só podiam dar nisto, as mulheres da sua geração eram bipolares.

E ter aberto a caixa de Pandora em busca de uma voz própria nem sempre ajudava. Claro que os assertivos lembravam que assumir a dor faz bem, pode potenciar saltos significativos de crescimento e maior integridade emocional, bla, bla, bla. O pior era a química disso tudo, o desconforto de ter sonhado ser maravilhosa, mas saber-se treinada para usar a volúptia do livre arbítrio, e pelo meio as emoções descarregarem hormonas desconcertantes. Às vezes, tinha a nostalgia de uma vida alcatifada que nunca escolhera, embora já a tivesse espreitado.

Hoje era um daqueles dias maus. Para falar francamente, mesmo fodido. Mais uma vez, estava quase a ficar atrasada na entrega da merda do dossier com que se havia comprometido. Esta espera de um parecer administrativo punha-a numa ansiedade paranóica e, apesar da pressão no diafragma, estava a tentar fazer de conta que não acusava o cansaço de viver todos os dias num país pequenino com um dramático cenário natural, ambições de arrojo e desempenhos medíocres.

O tm sussurou chamadas ao mesmo tempo que viu a Fernanda chegar, embrulhada no vestido/tendência, botas eloquentes e um corte de cabelo fresquinho. Como é que ela arranjava tempo para a sua “imensa criatividade”, paria crianças num ritual periódico e alimentava umas fidelidades românticas a não sei quem, apesar da eternidade do casamento com o baril do Manel, que gramava aquilo tudo com um sorriso olímpico?

Depois viu-a acenar-lhe e, quase em simultâneo, a Margarida saiu do gabinete, seca de carnes e tão nutrida de uma patine de arrogância e vícios pagos. Na eterna televisão de todas as salas de espera, alguém fechava uma notícia em grande estilo e dizia que “o haxixe é como uma mortalha para as capacidades mentais”.

-- Quem é aquela?, leu nos lábios da Margarida enquanto a Fernanda se movia na sua direcção, um sorriso pragmático na cara, como sempre, a desfazer-se à pressa da pergunta da outra.

E, de repente, sentiu uma enorme saudade da tia, do consolo de falar com ela sem enfeites, mesmo que tivesse olheiras até ao umbigo, quilos a mais escondidos num decote em V que já era e todas as contradições a gritarem sem pudor. Uma necessidade irreal de sair dali, mesmo que o corpo se mantivesse no sofá, tal não lhe arranhava a esquizofrenia de viver dualidades a todo o vapor.

A Fernanda debatia-se em episódios recentes sobre aqueles amigos comuns (-- Vê lá que o Jorge anda a fazer psicoterapia e já não sai à noite por aí), a Margarida lembrava-se de Óscar Wilde a propósito das “ tragédias dos outros serem sempre de uma banalidade exasperante” e ela como que a flutuar, a combinar um almoço para usufruir a luz destes primeiros dias de primavera.

Depois, a recepcionista chamou-a e sentiu-se quase salva. Só quando o aperto da mão mole do técnico que a esperava a trouxe a uma realidade mais corpórea, percebeu a antecipação do vómito irrepremível. O cabrão dizia-lhe que ela tinha que “anexar a documentação agora exigida, no prazo indicado, e cumprindo os termos do despacho que prefaciava o dossier, porque o volume de apreciações a que o departamento respondia não se compadecia com apropriações criativas, mais leigas”.

Aí Maria lembrou-se de um medo antigo, ganho num jantar transmontano, em que na mesa do lado uma mulher muito fatal tanto se ria da anedota pícara do colega sedutor que, já entre conhaques, vomitou a alheira e a posta mirandesa, tudo salpicado com grelos e tinto da casa. No caso, ela só poderia regorgitar a puta da francesinha a que se tinha rendido, num grande paleio brasileiro do empregado de mesa careca. Falas mansas, pão ensopado em molho grosso numa trip de carne, enchidos e ovo, sem ignorar as batatas congeladas mal fritas, e agora ela que se amanhasse com a versão bimba de uma tosta francesa para mulheres urbanas à beira de um ataque de nervos e falta de tempo para se dar a esse luxo.

Saiu dali a enfiar papéis na pasta, com uma raiva a galgar terreno feita de vontade própria, enfiou-se no carro e começou a ter uma crise de soluços.
Respira, idiota, respira devagar e agora sustem a oxigenação, que a quebra de ritmo repõe o automatismo... e, nesse instante, soube como era patética na sua aflição de menina com vergonha de se confundir na rejeição de uns papéis pintados com a tinta de um burocrata qualquer.



1 Comentários:

Blogger Bruno Moutinho disse...

E as memórias soltam-se. São conversas e acontecimentos. Lembro-me de conversas soltas embebidas numa noite de copos, onde o retiro privado trás ensinamentos e partilhas de vida.
Essa francesinha. O problema das batatas fritas (mal fritas) congeladas é que a pressa do vendedor vem sempre com defeito. O cliente come e cala, porque a cidade assim o exige.
Mas sim, o importante é respirar, a loucura e o desespero só nos trazem mais problemas.
Gostei muito, como sempre ^_^

sexta-feira, 29 fevereiro, 2008  

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