11 julho 2008

Um quarto de lua

Velas acesas ao fim do dia. Incenso numa casa limpa com comida no forno. A paz dos bichos amados e da estética dos objectos escolhidos em redor. Um lustre vintage num cenário minimalista, meio desarrumado, e toda a inevitabilidade da memória, em cada trago de branco seco. A idade toda num dia, quando já é Maio em Lisboa e os jacarandás floriram numa promessa de novas revoluções. A esperança é fodida após uma furiosa tempestade!
Hoje, quando saí para a vidinha necessária, tropecei em fotografias espalhadas na calçada, um albúm burguês de um qualquer “O meu casamento”, lançado rua abaixo, e tudo aquilo deu-me uma angústia que me deixou imóvel, já dentro do carro, absorvido a olhar os outros. Quase em simultâneo, um bando de adolescentes espigados, soltos do turno escolar, naquela pujança cruel própria foi revirando a intimidade daquela gente exposta. Sonhos de adultos arremessados para o mundo e os amigos deles e os filhos de todos, ali à mercê da vilania de qualquer manipulação.
Na inevitável mania de espiar o mundo, lembrei-me de votos antigos. Há 25 anos atrás, eu e a Maria, renovámos uma promessa que resgatava a nossa sede de liberdade e um desejo de querer uma vida vivida, com o gozo do contraditório em cada momento. Acho que essa necessidade de acender a consciência de nós, diferentes mas gémeos nas emoções, selou um compromisso aos doze anos:
-- Francisco, nunca nos vamos esquecer do que queremos agora! –entoava ela, certa da necessidade de aliviar a pressão da pirâmide de prioridades que se avizinhava lá para o final da adolescência.
Mudar de ângulo tem disto. Reajusta-se o foco na luz, surge outro enquadramento e arrebatamo-nos numa opção que se impõe agora, ali, naquele contexto, numa tomada de decisão instantânea e única. Sempre na senda do momento significativo, quantas vezes ponderado e logo perdido.
Mas a busca do tempo perdido é do melhor que há, como toda a gente sabe. Aquele embalo de culpa resignada é chocolate quente na alma, que se baba toda se formos capazes de dar esse salto à vara no meio da endiabrada memória e descobrirmos morangos suficientes para trincar no futuro. Vitaminas e açúcar podem salvar qualquer um da esperada insanidade moderna.
Nestas andanças, lembro-me sempre do desabafo da Xana sobre a alternância apimentada da Lua, esse salgado romance das marés, num ciclo de mel e fel das criaturas com espinal medula e encantos míticos. Corre, nas nossas cadeias de informação milenar, o susto de estarmos sós perante predadores desesperados, e esse assombro fez-nos garantir parceiros leais ao nosso clã, alargado da cama à casa, do território familiar ao mundo todo, do gesto às ideias. A paz, senhores, “um viver habitualmente” como queria Salazar, que tantos ainda trazem agarrados ao sonho de uma feliz existência.
Magnífica solução se fosse a tradução da identidade ocidental que, ao que se conhece, cresceu sempre nesse permeio do oposto, da contaminação, do desconhecido e da mudança. Talvez a paz seja o silêncio que não pesa porque nada há a temer do outro, que sendo diferente de nós, não nos ameaça antes nos sublinha em cada olhar.
“Namaste, companhia” seria um cumprimento de espírito aberto em qualquer encontro, fugaz ou eterno enquanto durar, livre do domínio da pertença e da representação da hierarquia cultural. E para as mulheres talvez representasse a grande audição, esperada à séculos, nesses talentos abafados na grandeza do lar a ferver um despeito surdo, capaz das maiores magias. A nós, homens tendência à parte, garantia a salvação dos rituais desconcertantes.
A espada e a taça mudavam de mãos. Outros jogos não forram os nossos sonhos? Por detrás de qualquer espelho, quando um raio de sol incide no vidro de um relógio abandonado, sempre que a água cruza um prisma e um coelho cavalga o arco-íris não seremos todos também autênticos nessa margem inexplorada da alma? E se a perspectiva ganhasse asas, agarrada ao fascínio da descoberta de nós nessa aventura maior que é o caminho de uma vida? Sonhos e pedras, chão e nuvens, livros e pão. Tudo a fazer, de novo.

2 Comentários:

Blogger Bruno Moutinho disse...

Gostei muito desta nova "personagem". Um homem, de "h" pequeno, que também chora as desventuras e aventuras que vai sonhando, carregado de emoções.

O retrato do matrimónio, que é sagrado segundo dizem, que não resiste ao quebrar da fantasia. Gostei da imagem do albúm burguês. É realmente o que penso dessa ideia de casamento pactuado com um suposto deus, a pose perfeita no cenário perfeito, a segurarem as mãos com ternuras e desejos que mais tarde deixarão de florir.
E a culpa nunca é de ninguém sendo de todos.

Outra referência que me intrigou e deixou curioso foi a Xana.

Sem dúvida único, como sempre, deixa-me encantado o canto das tuas palavras. Quero saber mais e aguardo novas postas ;)

Beijinho do Pegasus ^_^

terça-feira, 22 julho, 2008  
Anonymous Anónimo disse...

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segunda-feira, 08 fevereiro, 2010  

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