16 junho 2005

O testamento da tia


A história já deve ter começado há muito tempo. Para o que nos interessa agora, basta perceber o tédio absoluto e talvez algum abuso consentido dos dias dela. Apenas as mãos marcadas pelo tempo, nesses sulcos finos de uma epiderme tratada a cremes e santos ofícios, não se tratasse de uma fêmea que nunca temeu os custos da vontade e do desejo.

Absorvida na aventura pessoal de se testar em cada dia, a entrega emocional proveio-lhe da adolescência em que lia, os clássicos e tudo a eito, com o abandono intelectual próprio de quem procura as referências significativas. Depois, cresceu-lhe o susto, nesse encontro desmesurado com a acção da gravidade sobre os corpos e os valores.

Muitos aditivos, entretanto, ajudaram-na a manter-se atenta, descontraída, presente, a aceitar as rugas de alma mas a evitá-las na competência diária.

Apesar de tudo, continuara a acreditar na disponibilidade mental como ferramenta social. A resposta pronta para o medo dos medos todos. E a epiderme a construir caminhos de um mapa que, sendo seu, a ela nada havia perguntado. E um dia decidiu partir sem dizer nada a ninguém.

Claro que a percepção dos cheiros foi um bom alerta. Nunca sentira os odores da intuição guiarem-lhe a vida assim, talvez fosse a necessidade de viço fresco, “própria da meia-idade”, mesmo que não soubesse bem adivinhar a textura da expressão no seu percurso.

Agora, lá ia nesse grande comboio rumo à Galiza. O ritmo do transporte agradava-lhe, mas ainda sentia imenso desconforto quando encontrava gente que julgava saber os andamentos todos da vidinha. À mesa, entre refeições e parceiros de ocasião, dedilhavam-se conversas informadas e desenhava-se quase sempre uma necessidade de pertença a um grupo eleito... Demasiados juízos inabaláveis sobre desempenhos e escolhas de existências que julgavam partilhar ... sem que a dúvida lhes arranhasse a patética consciência.

Em momentos de maior cumplicidade, ela sabia que alguns desses outros a julgavam uma desinquietadora, pela genuína atenção que eventualmente granjeava a sua urbanidade. Mas até um gato sabe que a conquista da atenção – e há lá coisa mais trágica do que pedir apenas o tempo aos outros – não se compadece com falsas mostras de vontade. Quem vai a jogo quer o gozo da disputa e a desforra do domínio. Tudo desígnios da natureza, que sabe armazenar históricos desde sempre nesses nossos genes tão activos.

De qualquer dos modos, havia gente que desejava a vida tanto quanto ela.

Em momentos precisos, a energia que circulava em torno deles fazia-os saberem-se mais despertos por uma pulsão de sobrevivência urgente. Claro que evitavam a redundante manifestação destas emoções ao abrigo de um prazer tão íntimo quanto adivinhado. Os gatos também se sabem assim; passeiam excelência na exacta dimensão das suas necessidades, determinada e amoralmente. Pena é que os humanos tenham inventado agonias quotidianas só para espantarem tantos medos.

Sobressaltos à parte, o ímpeto da aventura pode ser incendiado por uma visão periférica que adivinha futuros e até pode rasgar contentamentos como esta viagem em busca do Norte mítico, a despedida dela agora.

Amanhã atravessaria o Minho e perder-se-ia nessas outras águas de chegadas e partidas sagradas. Só a Maria ia perceber a metáfora. Por isso releu o seu testamento à sobrinha para se aquietar, agora que se sabia já uma rota sem retorno.

“... Todos os bens acima referenciados e pertencentes à autora do presente disposto são doados à sua única sobrinha Maria, desde que a mesma aceite os princípios seguintes como o verdadeiro legado de sua tia, empenhando-se numa aventura diária de sobrevivência exigente.

Acordares perfeitos de sonos de infância e a memória quente de regalos únicos...

Dias efémeros e irreais, sacudidos pela luz boa de um céu azul e gente a cerzir o tempo, desfrutando, por mero gozo de contemplação...

Querer tudo, outra vez, com a mesma genica e manter a perspectiva com rigor... Cruzar colo, conversa de olhos e espírito crítico em grandes doses...

Saber ser claro e frontal, negociar cenários novos e alimentar sonhos... Construir moléculas de informação prática numa visão integrada de conhecimento...

Ler os outros, desdramatizando o erro e a subjectividade da memória...

E saber contar a espessura dos outros, essas histórias veladas de caracteres impressos em qualquer sobrevivência. Vidas desalinhadas também. À parte o incómodo das opções, resta a desonra do medo, cerzido a tantas raivas pequeninas, e outra vontade maior... a de aventura. Quero que a sua se cumpra. Helena”