28 março 2008

Raízes ávidas

Dentro daquela caixa, mais uma caixa das muitas que se encavalitavam nos cantos lá de casa, encontrou cartas com palavras dos outros escritas há trinta anos. Pela noite fora, apesar do cansaço e do tempo de sono cada vez mais curto, foi-se deixando levar por uma curiosa necessidade de abrir mais uma e outra e outra, como se um íman a colasse àquelas memórias de uma adolescência tão intensa. Depois, aterrou na cama quase moribunda e no sono imediato e pesado foram crescendo viagens de gente que não via há mais de uma década misturada com a sua tribo de hoje.

E como sempre nos seus sonhos, entre a memória selectiva e os mitos inconscientes, reconheceu-se já a caminho de quem era agora. A mesma obstinada vontade de insistir em afastar os véus das coisas, de precisar de nomear sem metáforas, de desfazer aquela renda tão lusa com que a queriam proteger de si própria, recolhendo-a no apaziguado lar burguês que sempre lhe cheirou a esturro.

A grande contradição deste esforço de educação puritana foi-se impondo devagar porque, obrigada a ser boa aluna, interiorizou os saberes de uma instrução elitista em colégio feminino. Que melhor garantia para se tornar uma esmerada cabra que sempre odiara o que era fácil? É certo que a culpa a atordoou durante décadas, mas hoje descontruído o paradoxo fatal das (pré)ocupações sobre o futuro, estava livre para se deixar ser o que soasse mais autêntico em cada dia.

Talvez por isso Maria se recordava tão bem dos olhos verdes da tia Helena, aquela figura esguia com grandes pestanas nos olhos semicerrados de míope vaidosa, tão parecida com a boneca londrina que lhe trouxera numa Páscoa longínqua e que ela fizera sua eleita, já que todas as outras a aborreciam, ali imobilizadas e patéticas. Apenas esta babie prometia uma fome de futuro na lingerie rosada, o vestido vermelho estampado, o robe manteau preto e branco sobre tudo isto a fazer pandan com uma capeline mole, sapatos pretos com salto alto e longas luvas acetinadas. Um look total dos anos 60 ali à mão de semear para brincar com gozo de fazer-se menina no Bazaar em King’s Road em vez do bem-comportado Paris em Lisboa do Chiado.

Claro que com os bichos de pelúcia e os jogos era outra história, esses sussurravam aventuras e um desejo gordo de fazer menus de macaco numa cama de cowboys e salada de índios (muito mais coloridos!)... Ou então construir casas improváveis com jardins fantásticos, arte bruta e concreta feita de peças de Lego e papéis colados para garantir cenário e drama.

Nunca desenhou grande coisa, mas manipular tecidos e cartões e botões e lãs e missangas dava-lhe uso às mãos que, à parte isso, só seguravam livros e, claro, escrevinhavam desde cedo.

Depois, a tia-avó Irene ensinara-lhe a fazer palavras cruzadas e a partir daí o feitiço foi lançado. Um amor à primeira vista recheado do desejo de nomear bem, de descobrir a palavra certa para aquele jogo concreto, um desafio gráfico e semântico de mãos dadas. E associado sempre a um odor difuso a Chanel nº5 e a Mary Quant cosmetics, unhas curtas pintadas de vermelho, à franja grisalha de Irene e a uma taça minúscula de Grandjó, que podia bebericar em ocasiões festivas, porque era vinho adamado e ia bem com entradas e queijo, pratos favoritos da tia-avó.

No meio disto tudo, lembrara-se da promessa feita aos filhos.

– As tuas palavras são tão caras... Esses teus papéis são bué difíceis e roubam-te horas! Deve ser deformação profissional, mas bute lá, senhora jurista.

Podias era dar a volta e inventar uma história para nós, para a Daniela e para a Beatriz que vai ter um irmão novo e ainda não sabe se quer gostar dele. Antes tinhas sempre tempo para contar aventuras tuas ou dos outros... – A terna chantagem da Ana e do Bruno fê-la derreter-se mesmo agora e na hora agarrou o pedido e agendou o desempenho.

Surpreendam-me esta semana, façam-me sentir bem... e eu arranjo uma surpresa, vale?

Agora, no final do dia, a despachar últimas tarefas e a organizar compromissos próximos, segura que tinha dado conta do recado daquela semana ininterrupta de merda atrás de merda, as insinuantes dores nas costas a ganharem terreno, a eterna tendinite a roçar o absurdo, estava tramada outra vez. Faltava a puta da história!

E, quase em simultâneo, passou da ansiedade de ter mais uma obrigação em atraso ao gosto contrário de ganhar tempo para desfrutar a coisa. Afinal, a perene rodinha precisava de ser oleada, sedenta de créditos para o cabrão do imprevisto que insistia sempre em aparecer sem ser convidado. Mas ela sabia que se sentiria sempre em casa se evocasse quem lhe recheara o coração e lhe ensinara a viver para aprender a acolher(-se) nos outros que nem sempre são demónios, apesar de nos distraírem tantas vezes.

Voltemos às raízes, ao cheiro da terra revolta e da erva molhada depois de um aguaceiro inesperado e graúdo, capaz de nos lavar o céu e reorientar o vento. Afinal, mesmo nos desertos, as raízes moram lá, por isso esgalhemos a alma com perícia até ao osso. Narinas abertas, percepção nua, sons crus. Que festim de bicho!